Todos os anos a família Oliveira se reúne na casa de Seu Jurandir para o almoço de Natal. Mesmo que ele não esteja mais presente, Haroldo, seu primogênito, segue com a tradição. Sem questionamentos, as mais velhas continuam o preparo de bolos e tortas, as mais novas ficam encarregadas da maionese e das saladas, os homens trazem bebidas, charutos e piadas, as crianças correm atrás das galinhas pelo jardim, e o dono da casa é responsável pelo assado. Na época áurea, Seu Jurandir escolhia o peru mais gordo do viveiro e enchia o bichinho de cachaça, dizia que era para deixar a carne mais macia e eliminar as toxinas. Hoje, Haroldo se contenta com uma embalagem de ave congelada e uma garrafa de vodka.

   — Uma pena que Seu Jurandir não conseguiu ver o limoeiro todo carregado.
   — Ele ia ficar tão orgulhoso. Cuidava tanto da hortinha, dava gosto de ver o homem com as mãos tudo suja de terra.

   Os primos, distantes durante trezentos e sessenta e quatro dias, trocam regalos, beijos e abraços. Latas de cerveja tilintam ao som de sertanejo. Fotos antigas circulam entre os parentes, trazendo lembranças de bons momentos.

   — E os vizinhos? Continuam enchendo o saco, Haroldo?
   — Nem fale, tio. Essa gente não presta. ‘Tão com obra agora. Deixaram meu quintal cheio de reboco. Morreu tudo.
   — O véio ali do fundo?
   — Ele mesmo. O tal do João Batista. Aquele que deu veneno para o Pitoco.
   — Que filho da puta. Mas você não deu um enquadro nele, não?
   — Vixe, se não. Dei uma juntada e mostrei o trabuco. Ele tá sabendo que não pode mais mijá pra fora, senão ó.
   — Meninos, vamos parar de falar esses desaforo. Seu Jurandir não ia gostar disso.

   A tia mais velha puxa a ladainha. Alguém pega o violão e ensaia os primeiros acordes de É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã. Todos se levantam para dançar. Cantam a plenos pulmões e brindam ao velho patriarca.

   Haroldo prepara a melhor caipirinha da região, nas suas palavras. Em voz alta pergunta se alguém vai querer uma, porque aí já aproveita, pega uns limões a mais no pé do Seu Jurandir e tira o bicho do forno na volta. De um genro aqui, de uma cunhada acolá, algumas mãos se erguem para o lendário drink do anfitrião. Ele ruma para os fundos do terreno, alivia suas necessidades em um arbusto e brinca com o pastor alemão mestiço no canil. Passa pela pequena edícula e se depara com o limoeiro, petrificado como se tivesse cruzado olhares com Medusa. A árvore está morta, sem folhas, todos os frutos caídos no chão, envenenada. Do outro lado do muro cresce uma construção de dois andares, uma janela se abre, e dela uma sombra desaparece. Haroldo colhe alguns limões podres e volta até a cozinha. A garrafa de vodka entorpece e deixa a carne mais leve, mais solta. As toxinas devem ser eliminadas, o ritual precisa ser seguido à risca. Abre o armário mais alto, longe do alcance das crianças e puxa uma faca. O sangue ferve. As paredes começam a derreter. As portas batem sem sincronia. As luzes diminuem de intensidade, piscam, falham. O chão parece se distanciar. Mais uma dose de vodka, as toxinas… precisa eliminar as toxinas. Vultos tentam segurar sua mão, mas a lâmina cai e separa as partes. Com força as espreme para retirar um sumo viscoso. Um jorro de água avermelhado escorre da fonte putrefata. Do lado de fora, o tio conta uma anedota antiga, as primas fofocam sobre o casamento de alguém. De dentro da casa, o ácido corrói as mãos, o branco dos ossos adoça o pilão que esmaga os fragmentos. A música e as gargalhadas abafam a frieza sendo triturada. Um a um, são preenchidos os copos com o plasma misturado ao gelo. Gritam por Haroldo, querem tirar uma foto da família, ele não escuta. O forno escancara a boca e no interior dela uma travessa brilha. Haroldo a retira e com cuidado ajeita o prato principal. Anda devagar, carregado pelos anjos que foram expulsos do Céu. Coloca as bebidas na mesa de fora e retorna para a cozinha. Ninguém nota sua movimentação, estão absortos com as festividades. Com um sorriso no rosto, o prato principal é levado para o quintal. O sorriso da cabeça de João Batista anuncia que o banquete está servido.

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