Buzina. 

A morfina de motoristas indômitos. A gasolina de nefastos frêmitos. Maleável com um simples toque de dedos ou com um murro destemido. 

A força aplicada denota a intensidade do urro, do alívio subsequente – mesmo que momentâneo – para ser rapidamente furtado em uivos indolentes. Se houver resposta, pior. Acontece que elas nunca caçam sozinhas e se reproduzem como coelhas no cio. 

Quando um não quer, os dois buzinam. Quando os dois não querem, ainda assim ouvem a quinta sinfonia de Beethoven, que se fosse vivo daria graças por já ter alcançado a surdez. 

Em uma cidade como São Paulo, onde os marajás do asfalto desfilam suas carcaças de plástico, fibra de vidro e metal, ao som das trombetas de Malebolge, cada cruzamento é um espetáculo. A hora do rush é a sua apoteose. Motocicletas desfilam em linhas com cerol costuradas   desordenadamente, pedestres se arriscam indevidamente, mas há de admirar sua coragem. Bicicletas parecem invisíveis e imputadas aos cantos são ultrapassadas pelos leões da savana de pedra.   

Pouco importa se na esquina há um hospital, um asilo ou uma igreja. O bloqueio do trânsito está acima de todas estas entidades. Empatia não existe de nenhum dos lados – não há tempo para isso. Dificilmente exista um motorista que nunca tenha atravancado um cruzamento, e se souber de algum, por favor, encaminhem o Nobel da dirigibilidade à essa pessoa. 

A reciprocidade buzinística é implacável, imperdoável, a pressa urge, como se cada um estivesse exasperado, se contorcendo com um desarranjo intestinal em busca de um vaso sanitário. Funciona como um jogo de batata quente, onde a reação é testada a cada semáforo. 

Parece que a vida se resume apenas  a reflexos e respostas automáticas. Reprodução de padrões para adentrar alguma adequação social.  Tudo é tão rotineiro e espontâneo, que nem parece mais um padrão repetido. 

Talvez se houvesse mais questionamentos, pensamentos, um tempo para um respiro. Quem sabe se houver uma pausa, um levantamento do porquê, para quê, como e onde.  Pode ser que toda essa ligeireza seja apenas um…

Não tive tempo para concluir o pensamento, já que estavam a buzinar atrás de mim.

Texto autoral de uma mente em ebulição. Se gostou, aperta o botão abaixo, deixa um curtir, escreve um comentário e faça um aspirante a escritor feliz.

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2 thoughts on “A Trombeta Sem Asas

  • Priscila 20 de dezembro de 2021 at 22:56

    Adoro sua escrita, ela me transporta para os lugares descritos, a riqueza de detalhes faz com que eu crie um filme na minha cabeça, consigo imaginar as pessoas , lugares e suas formas. Adorei tbm reticências literárias e um retrato sobre palavras e o silêncio.

    • Tomate 23 de dezembro de 2021 at 11:47

      Fico muito feliz que consiga ser interpretado desta forma, passando um pouco do que vivi e também criei (literariamente). Muito obrigado pelo comentário, Priscila 🙂

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