Risadas. Deboche. Desconfiança.

Não precisava entender o idioma quirguiz para compreender o sentido da conversa, mas fizeram questão de encontrar alguém que falasse inglês.

– Para onde você deseja ir, amigo?
– Para a região de Osh, mas não se preocupem. Eu viajo de carona. Não pago pelo transporte. Faz parte de um projeto que estou elaborando.

Mais risadas.

– Sem pagar você não chega a lugar algum, meu amigo.
– Compreendo o seu receio. Mas vim da Alemanha até aqui sem pagar. Creio que cheguei a algum lugar, certo?

quirguistao

Tinha cruzado mais uma fronteira por terra, vindo do Uzbequistão e me embrenhando no Quirguistão. 

Eu era, provavelmente, o único estrangeiro que existia pelas redondezas, e desfrutava do meu habitat preferido: poeira, pessoas que não falavam a minha língua e muita curiosidade.

Despistei os olhares e a ajuda dos taxistas, para observar para onde deveria ir.

 

O destino: Osh, segunda maior cidade do país. Uma pessoa me hospedaria por duas noites nos arredores da “metrópole” de quase 300 mil habitantes.

Depois de uma carona um pouco frustrada até o centro da cidade, me falaram para esperar em um estacionamento, que em breve alguém iria para a região que eu gostaria, algo em torno de 50km ao sul de onde estava.

Minutos voaram. O ponteiro que marcavam as horas se moveu também. Quando a esperança parecia se esvair, um simpático quirguiz apareceu na sua caminhonete. 

No meio das conversas infrutíferas na fronteira, eu consegui um celular para ligar para Zhanibek, a pessoa que aceitou me hospedar. Eu apenas disse que estava a caminho, mas não havia como prever quando chegaria. 

O tempo passou e a intuição dessa pessoa maravilhosa acabou o levando até aquele estacionamento em Osh, pois era de lá também que o transporte local partia.

Jantamos alguma carne macia ensopada em muito óleo. Era o que eu precisava para me restabelecer.

Voltemos um pouco no tempo agora. 

Exatamente 40 dias antes, Zhanibek estava retornando para o vilarejo onde mora, quando encontrou um estrangeiro na beira da estrada. Resolveu parar e averiguar. 

Naquele momento ele não falava uma palavra em inglês, mas isso não o impediu de ajudar. O viajante era um belga que gostaria de chegar até as montanhas ao sul.

Como estava tarde, Zhanibek o convidou para dormir na sua residência, podendo seguir quando bem entendesse.

Parece apenas mais um gesto simples de bondade, mas muita coisa mudou com essa atitude.

Entusiasmado com o estrangeiro, o quirguiz queria encontrar uma forma de ter mais pessoas de países diversos ao seu redor, e com a ajuda do tradutor do Google pelo celular, ele conseguiu se comunicar e conhecer o Couchsurfing.

40 dias se passaram, e depois de alguns hóspedes estrangeiros, lá estava eu, sentado frente a frente com Zhanibek, e falando inglês. Óbvio que não fluentemente, mas a cada dia a gente utilizava menos o celular.

Ele morava em Borbash, uma pequena vila, com sua família: esposa e 3 filhos, irmão com respectiva cônjuge, e mais 2 pimpolhos.

Na parte da frente funcionava a sua padaria, ou pelo menos a parte responsável pela manufatura, já que todo o produzido era entregue nas mercearias locais.

Na parte de trás um quintal com vista para as montanhas.

No interior nenhuma cadeira ou cama. Dormiríamos no chão, que também serviria de mesa e playground para as crianças.

Me envolvi. 

Participei das entregas. Brinquei com todos. Fui chamado de irmão pelo menores. Conquistei os maiores.

2 dias viraram 9.

No segundo dia fizemos uma trilha, e como nada havia sido mencionado sobre chuveiro, dei uma indireta:

– Como seria bom um banho depois de toda essa caminhada.

Seria e foi, mas não como eu pensei.

O banheiro da casa ficava no quintal, e se tratava de uma pequena construção de madeira, com um buraco no centro. 

Sem chuveiro. Sem privada. Sem descarga. Sem iluminação.

Apenas um bom treino de agachamento e fortalecimento das pernas.

Descobri que as casas da região não dispunham de chuveiro. Parecia uma prática comum a todas.

Quando queriam se banhar as pessoas iam até uma sauna pública, separada por sexo, não esqueçamos que estamos em um território predominantemente muçulmano.

E assim comecei a me despir, com receio de ficar totalmente nu, mas a cueca continuou para todos. 

Eu nunca tinha ido a uma sauna com o intuito de tomar banho, mas foi revigorante. 

Seco, quente e inóspito, me senti como um frango sendo assado. 

Do lado de fora uma piscina gelada. Um a um, eles pulavam e rapidamente buscavam a escada para sair de lá. Tudo isso para voltar à fornalha em seguida.

Os mais cansados se sentavam ao redor de uma mesa, onde bebiam chá ou uma mistura fermentada de gosto duvidoso. E essa era a rotina, de 2 a 3 vezes por semana.

Em 9 dias, tomei 3 banhos, e me senti de alma lavada.

Todas as manhãs comíamos um pouco dos pães e doces produzidos, para depois percorrer a região vendendo os pacotes com biscoitos deliciosos.

Todos os dias as crianças pulavam nas minhas costas, me derrubavam no chão e cantavam o hino do Quirguistão para mim.

Um belo dia, voltando de uma mercearia, fui abordado por uma menina chamada Nurissa, 13 anos de idade, e a primeira pessoa que falava inglês comigo por lá. 

Ela perguntou se eu gostaria de ir na sua escola no dia seguinte. Para essa noite ela já havia planejado um jantar comigo e a sua família. Zhanibek fez sinal para eu seguir em frente.

Era mais uma casa como outra qualquer da região: simples, pequena e muito acolhedora.

Pai, mãe, Nurissa, sua irmã, e a avó delas dividiam 2 cômodos.

Durante a refeição com tradução simultânea, me contaram que era uma honra eu ter aceito o convite. Que a minha presença iluminava aquele lar.

Entre uma garfada no macarrão e uma mordida no pão, o patriarca da família me ofereceu o seu kalpak, um chapéu que quase todos os homens da região utilizavam. Depois fui saber que esse ato simbolizava o maior símbolo de respeito possível.

Posteriormente ganhei um kalpak de Zhanibek, que carrego até hoje.

A senhora de 96 anos, avó de Nurissa, era cega, e pediu permissão para me “ver”.

Com seus dedos enrugados ela me tocou. Massageou a minha face. E disse que era a primeira vez que “via” um estrangeiro na sua vida.

Na manhã seguinte fomos à escola. Uma euforia geral. Todos queriam olhar para a atração internacional.

Me levaram até a professora de inglês, que parecia não entender o que eu falava. 

Me carregaram até a aula de geografia, onde pediram para eu apontar no mapa de onde vinha.

Me seguiram por onde eu fui.

Nas ruas todos já sabiam das atividades de Zhanibek. O pequeno vilarejo parecia entrar no mapa pela primeira vez. Cogitaram colocá-lo na política. Isso mesmo, em apenas 40 dias, mas ele foi enfático: “Política e coisas boas dificilmente se misturam”.

Tudo que ele queria era dar um futuro diferente para as crianças. Queria ensinar inglês. E quem sabe em um futuro próximo, abrir o seu próprio centro de turismo sustentável na região.

Voltei para casa depois de ler alguns livros com Nurissa, afinal de contas era como eu considerava aquele lugar: uma nova casa.

Brinquei mais um pouco. Ajudei-os com alguns afazeres, e comecei a arrumar a minha mochila. Eu partiria no dia seguinte. Deveria seguir. Havia muito ainda pela frente.

Saí bem cedo, quando todos, menos Zhanibek, ainda dormiam.

Sou péssimo com despedidas. 

Acho mais fácil fugir.

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