Na minha infância, certas comemorações sempre foram muito mais aguardadas durante o calendário gregoriano. Pouco importavam suas razões ou motivações religiosas, mas sim suas premissas e recompensas capitalistas.

  Não pensem que eu era um mau garoto por isso. Só que a ideia de um coelho botando ovos de chocolate, ou de um velho barbudo e simpático entrando pela chaminé – mesmo que eu nunca tenha morado em uma casa com uma – eram muito mais cativantes que a de um senhor que multiplicava pães, andava sobre a água, algumas vezes transformando-a em vinho, ou subia ao reino do Céu para salvar a humanidade dos seus pecados.

  Longe de mim também a blasfêmia. Nesta época eu recitava religiosamente toda santa prece antes de dormir e ao entrar no carro rumo ao litoral com meus pais. Papai do Céu está de prova que não minto (muito).

  Engana-se também quem cogita que tudo caía de mãos beijadas no meu colo. Não, não, não! Para conquistar os corações do coelho e do bom velhinho, eu precisava cooperar durante o ano inteiro. “Seja um bom menino”, os adultos diziam. Era uma troca, não sei se justa, mas nunca encontrei um sindicato para reivindicar os meus direitos.

  Certa Páscoa virei o jogo ao meu favor. Estávamos na praia – lembro bem do calor que fazia e derretia os chocolates – quando meus pais intermediaram a negociação derradeira. Para receber os doces, o coelhinho exigia algo em troca: a minha chupeta.

  Maldito! Interesseiro! Eu sabia que ele andava a me sondar, percebia seus movimentos sorrateiros, mas a minha chupeta? O que ele faria com ela? Nem caberia na sua boca com aquela dentição tão avantajada!

  Não fazia sentido tal pedido, mas minha mãe foi enfática e irredutível: sem entregar a chupeta, o coelhinho não apareceria naquele ano!

  Esbravejei, chorei, fiz bico, chupei o objeto de desejo pascoal, pensando que talvez fosse a última vez. Será que os coelhos atualmente fazem permutas com mamadeiras de piroca?

  Enfim, cedi. Entreguei minha companheira de sonecas, de momentos tristes e de falta de atenção. Meus pais ficaram muito contentes com a conclusão contratual – felizmente não firmada em cartório – e afirmaram que no dia seguinte o coelho viria com cestas gordas e fartas.

  Entre o ônus e o bônus, havia uma noite inteira de escuridão, solidão, e que demoraria horas, talvez até dias para passar. Bolei um plano! Sem a chupeta e com os ouvidos atentos, eu ficaria na espreita do negociador. Caso o pegasse espalhando os chocolates pela casa, levantaria e faria uma contraproposta.

  Adormeci antes de ouvir seus passos e ao acordar me deparei com suas pegadas escada abaixo. Esqueci completamente que havia deixado uma parte de mim por isso, e encantado desci, colhendo bombons e ovinhos que ele havia deixado pelo caminho. Meus pais e avó já estavam despertos, tomando café, e logo que me viram exclamaram categóricos: olha só quem passou por aqui! A obviedade dos adultos às vezes é patética.

  Corri, recolhendo todas as guloseimas, até encontrar uma cesta com mais ovos e barras de chocolate – dos tempos em que elas ainda não valiam o rim do coelho. Eu estava feliz, mas não por completo. Faltava-me algo, mais precisamente entre minhas gengivas. Cabisbaixo, porém com a diabetes em processamento contínuo, resolvi mexer em algumas gavetas do armário da sala – algo que eu também fazia religiosamente. Abria uma a uma, não sei exatamente porquê, visto que no dia anterior já tinha conferido todos os seus conteúdos. Baralhos, blocos de anotação com placares de buraco e cacheta. Toalhas de mesa, porta copos, esteiras para colocar pratos quentes. E eis que na última delas, exatamente na derradeira, um objeto novo se destacava de todos utensílios domésticos e de jogatina: a minha chupeta!

  Com os dentes ainda pegajosos e marrons, mergulhei minha velha amiga entre meus lábios e pensei: hoje não, senhor coelho! Hoje não!

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8 thoughts on “Negociatas Pascais

  • Sonia 18 de abril de 2022 at 02:58

    Vc já era danado desde pequeno. E o pobre do coelho foi tapeado! Acho que lá na chácara aconteceu a mesma coisa.

    • Guilherme Eisfeld 19 de abril de 2022 at 12:38

      Deste episódio não lembro. Mas se a mãe diz, quem é o filho para contrariar o coelho, né? 🙂

  • Raquel 18 de abril de 2022 at 17:38

    Good writing is sexy. Sempre bom te ler.

  • Edmundo Eisfeld Rosa 19 de abril de 2022 at 02:05

    Também passei por isso, mas foi no Natal. Acho que é de família: Fazer escambo de chupeta… Ora, ora!

    • Guilherme Eisfeld 19 de abril de 2022 at 12:37

      Criatividade no escambo infantil pelo jeito não é o forte da família, hein Ed?

  • Rafael Ginane Bezerra 20 de abril de 2022 at 13:09

    Bacana a sua crônica de Páscoa, Guilherme! Gostei do humor irônico nos comentários sobre a lógica das trocas.

  • Jocimara Holz Eisfeld Rosa 23 de abril de 2022 at 22:22

    Ah, eu tive que entregar minha chupeta pro “velhinho do Natal”. E não teve jeito, pra ficar com a bicicleta eu tive que entregar a chupeta em meio a muitas lágrimas. Que velhinho cruel, kkk.

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