Picanha Rodoviária no Caracalpaquistão

By Guilherme Eisfeld

Uma flanela com duas mulheres seminuas balançava no para-brisas do caminhão velho e barulhento que havia me tomado na beira da estrada.
Na sua espreita um tigre a tudo observava em silêncio, como a esperar a hora certa para dar o bote.

Estávamos a adentrar a República do Caracalpaquistão, uma região autônoma pertencente à ex-República Soviética do Uzbequistão.
Para tentar te localizar melhor no mapa, mire para a Ásia Central, mais exatamente na fronteira sul entre Cazaquistão e Uzbequistão.
Tudo bem se você não tiver a mínima noção de onde eu me encontrava.
Não há nenhum demérito nisso. Mas me permita contar sobre o Mar de Aral.

A União Soviética planejava transformar a Ásia Central no maior polo produtor de algodão do mundo, e para isso fez uma troca voraz. Secou o quarto maior lago do mundo em apenas 40 anos.
Um punhado de algodão, por um bocado de pesticidas, e uma bagatela de água. Combinação perfeita para criar um deserto mórbido e inabitável.
Barcos abandonados alternavam seu espaço com garrafas plásticas e muita areia, em um cenário pós-apocalíptico de filme hollywoodiano.

O motorista?
Um russo a transportar vacas para Bukhara, no Uzbequistão.
As vacas?
Não sei se para leite ou para a faca.

Eu senti o julgamento. Não o reprima. Deixe fluir. Ele é necessário.
Quando descobri o que vinha na carreta já era um pouco tarde.
Eu precisava seguir o mais rápido possível para algum lugar onde encontrasse água.
Isso não é uma desculpa esfarrapada. É uma decisão tomada em segundos debaixo de sol e poeira.

A um certo ponto ele precisava parar. As bovinas estavam encarceradas e sem água, e a cada intervalo de tempo necessitavam um pouco de refresco.
Cirúrgico, o caminhoneiro vestiu seu macacão branco de hospital, e com uma bacia começou a abrir espaço entre os animais, que mugiam em desespero.
Se elas não se movessem, ele aplicava uma pancada com o objeto metálico, o que causava mais furor ainda.
Isso se repetiu. Nos quatro compartimentos que separavam algo entre 10 e 15 animais. Não consegui contar.
Estava transtornado.

Minha fluência em palavrões em russo também não deixava dúvidas. Cada vaquinha que se encontrava no local indevido ganhava, além da bandejada, um codinome que variava de puta, merda, ou algo com cu no meio.
Efêmero. Trágico. Drástico.

Não consegui esconder o meu incômodo. Me flagraram. Acho que houve até algumas piadas com a minha masculinidade.
Nem tive tempo de pensar em desistir.
No meio de mugidos, batidas metálicas e água corrente, um homem aponta para mim e resmunga algo irreproduzível. Após repetir algumas vezes, ele indica para eu pegar meu celular e escreve no tradutor que eu iria seguir com ele para o Uzbequistão. Que em alguns minutos ele partiria, então era para eu pegar minhas coisas rapidamente e correr para o caminhão dele.

Alvoroçado com minha libertação daquele fardo animal, deixei minha garrafa térmica e minha xícara de metal para o molestador de mimosas.
Perdão pela alcunha depreciativa.

Prometi que assim que estivesse em um ambiente controlado, e tivesse a opção, eu faria um consumo mais consciente de produtos animais e seus derivados. Digo controlado, porque ao viajar você o perde. Com a minha proposta de ser hospedado na casa de desconhecidos, eu tinha de tomar o que me era oferecido.
A ofensa de negar um prato de comida, feito de bom grado seria muito maior que meus princípios éticos com o mundo animal naquele momento.

Pode me julgar novamente, mas a partir daquele momento eu iria passar os próximos 3 dias e 3 noites dentro de um caminhão.
Cruzando o deserto, cantando músicas do Tadjiquistão, conversando através do tradutor, cozinhando coisas duvidosas, sorrindo, e me deslumbrando com os pores, e nasceres de Sol em uma imensidão de nada e mais nada por todos os lados.
Vez ou outra sendo atrapalhada por um grupo de dromedários errantes e aventureiros.

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