Fui convidado para um casamento, quando já tinha planejado ir a um show. 
Mas não era um concerto qualquer.
Sir James Paul McCartney tocaria na minha cidade natal.  Um Beatle. Um sir, mesmo que eu não saiba o que esse título significa.

Ele dispensava apresentações. Uma lenda viva. Pelo menos em lugares eurocêntricos, visto que na Índia, para um exemplo banal, encontrei várias pessoas que não o conheciam.
Comprei o ingresso durante uma madrugada, enquanto atualizava o site incessantemente alguns minutos antes da abertura das vendas, em um frenesi de apertar de teclas para garantir uma entrada exorbitantemente cara.

Alguns meses depois houve o anúncio do matrimônio de um grande amigo dos tempos de escola. Lembro que ainda brinquei com ele sobre a escolha da data, mas já o conhecia há mais de 20 anos, não poderia ver Macca.

Tirei a poeira de um terno antigo, torcendo para que ele ainda servisse, e me aprumei para a festa, que seria em um grande e vistoso salão de eventos.
Cerimônias prestadas na igreja, partimos para a comemoração. 
Pessoas felizes, com cara que passaram algumas horas no salão, colocaram uma roupa que quase nunca utilizam e foram festejar o novo casal. Todos em prol de uma mesma causa. Comer, beber e congratular esse evento. Nem todos bebem, talvez. Porém muitos sim. Eu, inclusive.

A cada trago de uísque reuníamos um grupo para praticar um ato falho: fumar. Maldito hábito. Resquício dos tempos de escola também.
A área de fumantes ficava do lado de fora do salão, logo de frente para uma grade alta, separando a rua da propriedade. 
Essas áreas são “boas” para fazer amizades. Se você já fumou, ou frequentou esse espaço, sabe do que estou falando.

A noite foi passando junto com as bebidas e as idas ao fumódromo, algo que no dia seguinte certamente faria o corpo reclamar.
À certa hora vejo um grupo falando com uma pessoa na rua. Todos riam muito, meio que em soberba. Por trás das grades, um morador de rua, que pedia por um prato de comida. Ele afirmava que nessas festas sempre havia sobras, e que se possível ele gostaria de algo para saciar a fome. 
Alguém já tinha perguntado para o segurança se havia a possibilidade de fazer um prato para ele, mas a chefia não autorizou. 

Voltei para dançar, já entorpecido, com sorriso mole, e corpo solto. A banda tocava com muita pompa, e os convidados transpiravam garbo.
Mais um cigarro e aquela pessoa ainda estava ali. 
Desta vez cheguei mais perto e notei que alguém “brincava” com ele. Falando em um espanhol fluente, arrancava risadas e suspiros dos engomados presentes, impressionados que não era um portunhol enrolado. Confiante, o tal mendigo disse que falava alemão também. 
Ninguém acreditou, caindo na gargalhada, quando sons guturais começaram a sair da garganta daquele ser.
Mais risos. Diziam que não eram palhaços, que aqueles ruídos eles também sabiam fazer. Foi quando resolvi entrar em cena.

Abandonei meus amigos e em alemão perguntei como ele estava. Em um misto de curiosidade e surpresa, ele se virou para mim e me respondeu da forma mais fluente que um cidadão alemão poderia se manifestar.
Eu queria saber como e porque ele estava na rua. Fui talvez afoito, ainda mais em um idioma estrangeiro, mas ele foi direto, e não desconversou. 

Nascido no interior do estado, ele teve uma infância trágica. Prefiro não entrar nos detalhes, até porque minha memória pode me trair, porém não tenho como esquecer a imagem de alguém contando que sua mãe, pai e avó foram assassinados.
Da casa da família para um orfanato, e de lá para a adoção por um casal de alemães, que o levou para crescer em um novo país. 
Disse-me que tinha de tudo. Condições que nunca teve antes, e recursos que jamais sequer sonhou. Todavia possuía um nome brasileiro, tinha a cor de pele diferente dos outros, e um trauma muito grande para seguir em frente.
Contou que nunca conseguiu se adaptar por completo. Que questionava muito a todos. Que arranjou brigas desnecessárias. Tantas foram que depois de completar o ensino médio resolveu voltar ao Brasil. Queria saber mais sobre o seu passado, então abandonou o velho continente.
Conseguiu trabalhar em fazendas por um tempo, com dignidade ele me disse. Até que o convidaram para ir para a cidade grande, onde haveria mais oportunidades. 

Uma filha veio ao mundo nesse meio tempo na roça, e ele batia sempre na tecla de que precisava dar uma vida melhor para sua pequena. 
Não se esqueça, ainda conversávamos em alemão. 
Nessa hora fiquei lá fora mesmo, enquanto meus amigos me chamavam de maluco. Bêbado e dando trela para gente de rua.

O último contato que ele teve com sua família alemã havia sido em 1998.
Perguntei se ele gostaria de falar com eles, ou se havia fechado as portas, e ele pensou. Olhou para o chão e expressou que achava que sim. Não estava certo, mas aquela questão o fez refletir.
Comunicou que já havia se desculpado com seu irmão não muito tempo atrás, e que estava disposto de alguma forma a agradecer os seus pais adotivos. Pedir perdão. Mostrar que eles haviam se tornado avós.

Meus amigos tinham desistido de mim, já que muito provavelmente a conversa tenha se alongado por mais de hora, não sei dizer.  Eu me encontrava sentado no chão nesse momento, já que a rua era mais baixa que os paralelepípedos da calçada onde eu estava, e eu queria falar com ele no mesmo nível, pelo menos do olhar.
Quis saber como entraria em contato com ele, pois tentaria encontrar sua família, e ele disse que não tinha celular, nem casa, com um sorriso no rosto. Porém um dono de abrigo o conhecia, tinha seus dados e sabia onde seus pais estavam, e também onde o chamar posteriormente.
De cabeça ele começou a enunciar um número telefônico. Repetiu-o, atrelando a um nome alemão, e bem anotado no meu celular, prometi que no dia seguinte, assim que me recuperasse, telefonaria para esse homem e ajudaria a organizar essa conversa. 

Eu queria abraçá-lo, mas a grade não permitia. Dei a ele alguns trocados que tinha no bolso, e em alemão desejamos felicidade um para o outro, exaltando a “coincidência” na junção dos caminhos das nossas vidas, mesmo que tão distantes.

Na tarde seguinte, já recomposto, busquei na agenda o número e pressionei o botão verde na tela trincada do meu celular para completar a ligação. 
Tocava, tocava e nada. Ninguém atendia. Talvez por causa de ser domingo. Mas isso se repetiu na segunda, terça e quarta. Dei folga e retomei na sexta. Também sem retorno Continuei por mais algumas semanas.
O número talvez estivesse errado, e na madrugada alcóolica não havia como confirmá-lo. 

Nunca consegui entrar em contato com essa pessoa novamente. E sinto que de certa forma falhei.
Prometi algo que talvez nunca conseguirei cumprir. Porém prefiro pensar que ele tenha conseguido de alguma outra forma atingir aquilo tudo que me contou, e o agradeço mentalmente por me mostrar que civilidade não está sempre debaixo de um terno bem alinhado.

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