Não eram nem sete da manhã e o despertador do Caio já estava ensurdecendo os galos aposentados por invalidez na República de Curitiba. Que raiva! Que ódio! Já falei mais de cem vezes para essa peste. Podia colocar uma música mais alegre, mais animada para começar o dia, mas não! Teima que tem que ser rock. Essa semana encucou em um som estranho. Disse que é da adolescência.

Lembra dessa música do Marilyn Manson, Joice? Mas essa é da época boa dele, antes que ele resolvesse tirar as costelas para chupar o próprio pinto!

Pelo menos não é nenhum artista vagabundo, mamando nas tetas do seu Rouanet. 

Levantei com o cheiro do café e enchi uma xícara, enquanto buscava um maço de cigarros na bolsa. Ao primeiro gole e trago, uma pontada tomou conta das minhas entranhas. Esqueci que hoje era o dia do não. Respirei fundo, contei até dezessete, com calafrios perpassando meu corpo e resolvi me ocupar. 

A água estava extremamente cara e escassa, então nosso presidente teve uma excelente ideia: cocô dia sim, dia não. A gente intercalava aqui em casa. Nas segundas, quartas e sextas, o vaso sanitário era meu. Nas terças, quintas e sábados, o Caio tomava conta do rodízio. Nos domingos? A grana tava braba, então a gente resolvia poupar. Nem me pergunte se é difícil ficar de sexta até segunda sem fazer o número dois, que não gosto nem de pensar. Com o Juninho nem me preocupo, ele ainda faz na fralda, e a Neide foi avisada: que viesse já cagada de casa. Não quero saber de usar nossa água. 

Isso tudo é culpa dos incêndios criminosos na Amazônia e no Pantanal. Acredita que o Leonardo DiCaprio, aquele que já afundou até o Titanic, está agora queimando a floresta? Eu vi com meus próprios olhos as mensagens que o tio Waldemar mandou no Zap. Parecia cena de filme. Ele tava junto com umas ONGs comunistas e uns índios destruindo tudo. 

Pelo menos o dólar deu uma subida, aí dá uma ajuda nos investimentos do Caio. É bom para todo mundo. Antes tava uma festa! Até a Neide chegou a viajar para a Disney. Para a Disney! A gente passando aperto aqui e ela indo para o exterior, veja se tem cabimento. Com tanto lugar lindo para ver no Brasil. Foz do Iguaçu. Fosse passear ali no Nordeste, tá cheio de praia bonita. Cachoeiro do Itapemirim então, por que não vai conhecer onde o Roberto Carlos nasceu?

Aiiiii! Uiii! Eu não vou aguentar. Eu não vou aguentar! Inspira. Expira. Fecha as pernas. Tranca o cu. Anda devagar.

— Neideeeeeeeeeeeeee!!! Faz um chá de folha de goiabeira pra mim!

Sabia que não devia ter comido aquele hambúrguer de carne de minhoca ontem, ainda mais com refrigerante adoçado com fetos abortados. Eu sabia, eu sabia, mas estava morrendo de fome. Aquela hora não tinha mais nada aberto mesmo. Culpa da Claudinha que tomou a vaChina. Deve tá lá no Barigui a essas horas com os outros jacarés. E eu me ferrando no banco, fazendo o meu trabalho e o dela. Eu avisei, era só ela fazer o tratamento precoce, que ficaria tudo bem. Eu fiz, e peguei só uma gripezinha. Tudo bem que tenho físico de atleta, e todo mundo sabe que só pega forte em gente mais velha. Tia Angela, tia Joana, tio José e tio Carlão não aguentaram, mas vou fazer o quê? Lamento profundamente, mas eu não sou coveira, tá?

Acho que passou o aperto. Tem horas que não é fácil, mas sei que hoje tenho que segurar uma carta com o cu. Vou ajeitar o Juninho para a escola, antes que a Neide invente moda de novo. Dias desses ela deu uma camiseta cor de rosa para ele. Cor de rosa! Quantas vezes vou ter que dizer que menino usa azul? Se mandar o moleque de rosa para a escola é capaz de voltar com uma mamadeira de piroca na mochila.  Essa gente parece que não entende. 

— Dona Ana, a senhora viu na tv o moço que foi espancado dentro do supermercado em Porto Alegre? Racismo, dona Ana! Racismo contra a gente!

Era só o que me faltava. Dou tudo do bom e do melhor, deixo até ela folgar nos domingos e agora a Neide está vindo com essa de vitimismo para cima de mim?

— Eu tenho até uma amiga preta, Neide. Namorei um escurinho na adolescência também. É negro ou preto que fala? Viu só, vocês não se ajudam. Não tenho como saber. E fora que somos todos iguais, né? Somos todos humanos! Tem uma frase do Morgan Freeman que eu gosto muito, como é que é mesmo? Ah, depois te mando. Fica tranquila, Neide. Isso é um caso isolado. No Brasil, não existe racismo.

Tudo que eu queria era soltar um pum, produzido com talco, espirrando do meu traseiro, fazendo a risadaria do Juninho, mas se deixar ele vir, o trem vai descarrilhar. Minha barriga já está que nem um pequi roído de tanta contração. Fazendo mais barulho que uma motociata de milhões transitando pela Anhanguera. Senhor! Deus que está acima de todos, dai-me forças. Eu prometo um sigilo de 100 anos sobre isso, mas me ajude!

A Clara, minha sobrinha, foi recentemente para Cuba nas férias, mas coitada, eu já disse para ela e para o Caio que não devemos brigar por política. Besteira pura! Para demonstrar que não guardo rancor, pedi para a Neide tirar todas as flores e plantinhas que a Clara deixou para cuidarmos, e trocar por mudas de soja. O agro é pop, tenho certeza que ela vai me agradecer quando voltar. Espero que ela volte. Eu não estava falando sério quando a mandei para Cuba. Imagina se o avião dela se perde no triângulo das Bermudas e chega nos confins da terra, caindo no abismo do fim do mundo. Minha Nossa Senhora! 

Mas eu até entendo, a vida não está fácil hoje em dia. Pelo menos tiramos o PT do poder. Já imaginou uma ditadura comunista neste país abençoado por Deus e bonito por natureza? Cruz credo, a minha bandeira jamais será vermelha. Tenho muito orgulho de ser curitibana, terra da Lava Jato, cidade do juiz que deu ordem para esse país novamente, prendendo o maior ladrão que já passou por aqui. Terá meu voto, e impresso de preferência, se concorrer a algum cargo público. Não tenho provas, mas tenho convicção de que se não fosse pelo nosso justiceiro e o mito, o país já estaria virado em um reduto feminazi e gayzista.

Não sei se contei, trabalho no banco, no caixa. Atendendo pessoas de tudo quanto é tipo. E quando falo tudo, é tudo mesmo. Tento manter a compostura, mesmo que a vontade às vezes seja a de dar uns bons sopapos. Hoje não foi diferente. O relógio indicava nem 11:30, quando surgiu um rapaz afeminado na minha frente. Cabelo comprido, não sei se peruca, alisamento, peito postiço, um horror. Na hora do almoço, virou assunto.

— E a Joice, hein? Tendo que atender consumidor de Kit Gay. É como eu sempre digo, o erro da ditadura foi torturar e não matar!

O Paulão, nosso gerente, é uma comédia mesmo. Justo e honesto com a gente, um legítimo pai de uma família tradicional brasileira. Pena que não deixa a gente usar o banheiro durante o trabalho, mas é compreensível. É para o nosso próprio bem. 

Nos dias do não, eu almoço só uma saladinha. Algo leve, senão não tem Cristo que segure. Eu sempre penso que é um exercício de superação, uma provação. Pelo país, pelo clima, pelo meu bolso, pelo futuro, pelas… minhas… vixe… era só um pei… não… calças…

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