Aos dezoito anos tinha compreendido que a luta seria árdua e a derrota assoladora. A mãe lhe arrumava o véu todas as manhãs, mesmo a contragosto, ainda que o pequeno pedaço de tecido fosse imediatamente desajustado assim que a porta fosse cruzada.
– Coloque a franja para dentro.
– Eu sei o que faço, não se preocupe.
A mãe, antes de lhe entregar o rosário, passou as contas pelos dedos enrugados, mentalmente orando pelo seu retorno. Sorriu.
A jovem colocou o artefato no fundo da bolsa, escondido entre restos de tabaco e batons desgastados.
– Deixa eu prender melhor aqui do lado – a moça ficou estática. A chaleira gritando a ebulição fez com que seu pensamento fugisse para o pai.
– Será que Papai lembra que é hoje? – perguntou a jovem, desejando que a resposta, mesmo que minimamente, divergisse da realidade.
– Você sabia que as primeiras mulheres a lutar contra o regime sumiram completamente? Os familiares nunca receberam sequer notícia do paradeiro dos seus corpos. – A jovem baixou a cabeça.
– Naquela época acreditávamos que mudanças ainda significavam melhorias. Não precisávamos usar o véu. Podíamos dançar e cantar nas ruas. O que você acha disso?
– Necessário e… perigoso – disse a jovem com os olhos pulsantes, carregados e prontos para diluviar.
– Elas eram valentes. Eu fui valente, você também é – disse a mãe com o pranto entalado e completou: – Ele não vai chegar a tempo.
– Não vou precisar mais do rosário, mãe.
– Você sempre vai precisar dele, minha filha.
– Diga para Papai que fiz o que fiz por nós. Eu não queria…
A mãe ergueu a chaleira, colocou a água no samovar, e serviu o chá para a jovem. A velha tinha lhe passado essa tradição desde muito cedo. Um torrão de açúcar e depois um gole fervente para desanuviar as tensões.
– Você fala alguma coisa em alemão?
– Não.
– Não será difícil. Você vai ver.
– Você vai me visitar, mãe?
– Claro que sim – respondeu a senhora, quando derrubou a xícara no chão. – Deixa que eu limpo.
– Mãe.
– Quê?
– Eu não quero ir.
– Por favor, não comece.
– Nunca mais poderei voltar. E vocês não conseguirão sair.
– Vamos dar um jeito – balbuciou a mãe servindo outra xícara.
– Não. Não quero mais, obrigada.
A velha se levantou. Um carro se aproximou da casa e a buzina rouca anunciou a partida.
– Arrume esse véu, menina – disse a mãe, puxando a filha em um abraço – Estaremos orando por você.
Assim que o velho Peugeot desapareceu de vista, o pai chegou. Esbaforido começou a correr na direção que sua esposa apontou. Caiu de joelhos no mesmo instante em que a filha acariciava o terço pela última vez.
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One thought on “Um véu. Um rosário. Um chá.”
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Está muito bem escrito e me prendeu Tomate. Parabéns meu caro.